Glauber Rocha, o criador que conheci
por
Florisvaldo Mattos
Glauber Rocha e Florisvaldo Mattos. 1976
Na Bahia ainda há gestos de reconhecimento a nomes que muito fizeram pela sua cultura, como o do saudoso amigo Glauber Rocha, reconhecidamente um ícone da cultura baiana, como um artista de fortíssimo poder criativo que, embora tenha morrido cedo demais, situa-se no mesmo nível de ilustres nomes da cultura baiana, como Gregório de Mattos, Castro Alves, Ruy Barbosa, Jorge Amado, Anísio Teixeira e Dorival Caymmi. Para mim, ocupa confortavelmente esse pódio de grandes criadores, um patrimônio da inteligência brasileira.
Durante um seminário promovido pela Secretaria da Educação sobre memória do cinema baiano, escolhi, eu próprio, este título para a minha elocução, desde que não poderia discorrer sobre tão ilustre tema, tendo ao lado Umbelino Brasil, um competente e conceituado professor e ensaísta de cinema e o professor Humberto Alves, escolhido para falar sobre Glauber Rocha, o cineasta revolucionário. Então, debrucei-me sobre a figura de Glauber Rocha do ponto de vista de quem, cultural e fraternalmente, com ele conviveu, por cerca de oito anos consecutivos, desde o momento que se voltou para a criação artística, com um irrequieto jovem começando a desvendar caminhos. Este prazer foi impulsionado de maneiras diversas, seja por encontros em
foyers e salas de cinema, em
halls de faculdade, portas de livrarias, redações de jornal, bares e sorveterias, seja por êxtases outros, que enriqueciam o trajeto de um fúlgido grupo que ficou na memória cultural da Bahia sob o rótulo de Geração Mapa, pelo que pensou, pregou e construiu.
Para que se entenda o que foi esta chamada Geração Mapa e o seu significado, até do próprio Glauber Rocha, é preciso que se compreenda como se desenvolveu a presença do modernismo na Bahia e de que forma as ideias dessa revolução estética, detonadas pela Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, se propagaram pelo Brasil, como sempre começando pelos estados mais próximos até chegar aos mais distantes. Assim, o modernismo chegou à Bahia com faustoso retardamento. Por isso, a adesão total e a consolidação dessa revolução estética, que realmente iriam transformar o ambiente cultural baiano, influindo na qualidade da produção de escritores e artistas, só aconteceriam alguns anos depois. Nesta perspectiva, o primeiro passo foi dado por três poetas, logo após a Semana de Arte Moderna: Godofredo Filho (1904-1992), Carvalho Filho (1908-1994) e Eurico Alves Boaventura (1909-1974), este, natural de Feira de Santana, como o primeiro, que eu considero o nosso principal e quase único poeta futurista.
A segunda onda ocorreria com a geração que atuou sob a liderança do poeta Pinheiro Viegas (1874-1937) entre fins da década de 1920 e inícios dos anos 1930, denominada Academia dos Rebeldes, cujos nomes principais eram Jorge Amado, Édison Carneiro, logo depois um dos maiores etnólogos do país, Sosígenes Costa, hoje esquecido, mas um dos nossos mais criativos poetas, Alves Ribeiro, que depois se tornaria destacada figura da Justiça do Trabalho, João Cordeiro, autor do romance
Corja, Clóvis Amorim, que publicaria os romances
O alambique e
Chão de Massapê.
O terceiro momento só acontecerá em 1948, com a intitulada Geração Caderno da Bahia, formada por jovens na época possuídos de forte ambição intelectual. Vale ressaltar um fato insólito precedente: na Bahia, o modernismo nas artes plásticas surgiu ou foi pioneiramente apresentado ao público, por incrível que pareça, em 1932, por um pintor chamado José Guimarães, a quem se deveu a primeira exposição em Salvador dentro dessa nova ordem estética. Aconteceu no hall do edifício do jornal
A Tarde, na Praça Castro Alves, em 1932. Identificava-se como portador de novas ideias que dominavam a Europa, a partir de Paris, onde convivera com expoentes da vanguarda nas artes plásticas. Daqui Guimarães seguiu para o Rio de Janeiro, onde morreria alguns anos depois praticamente ignorado.
Nesta terceira fase, surgiria algo novo e fundamental no processo: a presença de realizadores nas artes plásticas, o que não acontecera na década de 1920, tampouco na da geração dos anos 1930. Esses novos criadores são jovens imbuídos de cogitações estéticas avançadas, como Mário Cravo, Carlos Bastos, Jenner Augusto, Rubem Valentim, o argentino Carybé, todos eles pintores, e o tapeceiro Genaro de Carvalho, mas já se percebia no movimento evidências pujantes de diversificação nas linguagens artísticas. Na literatura em prosa, eram destaques Vasconcelos Maia e José Pedreira, enquanto na poesia pontificavam Wilson Rocha, seu irmão Carlos Eduardo da Rocha, Cláudio Tuiuti Tavares, Camilo de Jesus Lima e o mais jovem de todos, Jair Gramacho. No jornalismo e na editoração, despontavam Heron de Alencar e Adalmir da Cunha Miranda, responsáveis por fundarem na Faculdade de Direito a famosa revista “Ângulos”. Essa amálgama denunciava panorama estimulador e bem mais amplo no campo da criatividade e produção artísticas.
O salto seguinte, que ocorreria na segunda metade dos anos 1950, percorrendo toda a década de 1960, foi justamente o do grupo de jovens que, liderado por Glauber Rocha, assumiria a criação artística com novas opções de linguagem. Entre eles, havia artistas plásticos, como o pintor Sante Scaldaferri, Hélio Oliveira, um inspirado gravador, morto aos 31 anos, em 1960, e o depois mestre da gravura Calazans Neto. Proliferavam a prosa e a poesia, agora com Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes, Carlos Anísio Melhor, Paulo Gil Soares, Fred Souza Castro, mas destampava inédita novidade: no âmago desse movimento cultural emergia uma nova linguagem artística, o Cinema, carreando com ele o Teatro. Favoreceu muito esse aglutinamento cultural de jovens a grande reforma que o reitor Edgard Santos empreendia na então Universidade da Bahia, que depois seria federalizada, obra que até hoje reforça o reconhecimento por ele realizado, desde que dali surgiram Escolas de Arte, como Teatro, Música e Dança, e a reestruturação da Escola de Belas Artes, que existia desde o século XIX, mas só viria realmente funcionar com desenho moderno, a partir desse potente reitorado.
Estas ações foram importantes porque trouxeram à Bahia novos criadores e novos animadores do processo cultural, como Martins Gonçalves, criador da Escola de Teatro, Ernst
Widmer, na Escola de Música; para a arquitetura, Lina Bo Bardi, depois fundadora do Museu de Arte Moderna da Bahia. Muitos dos componentes da geração conviviam e alguns até trabalhavam com Lina Bo Bardi, na sede do MAM-BA, instalada no que restava do incêndio do Teatro Castro Alves ocorrido em 1958. Como restara o
foyer e ao fundo a caixa do palco, Lina Bo Bardi, com a sua inteligência criativa, reformou-os e lhes deu novo sentido. Fez do
foyer a sala de exposição do museu e, no espaço sob o palco, montou uma espécie de estrutura administrativa. Então, o Museu começou a funcionar, para depois, em 1963, o governador Juraci Magalhães dar sede ao Museu de Arte Moderna com a restauração do conjunto do Solar do Unhão e com todas as suas dependências, a Igreja, Capela e restantes galpões que teriam sido senzala no passado.
Então, “Geração Mapa” instaurou-se nesta Bahia em plena efervescência cultural, para afirmar a sua inclinação, sua vocação para as Letras e as Artes, fosse a literatura, a poesia, as artes plásticas, mas agora também o Cinema e o Teatro, mas precisava ter um líder, uma figura de expressão, um talento fora do comum, qualidades que naturalmente se concentravam em Glauber Rocha. Por sinal, quando ele tinha mais ou menos 14 anos, já numa sala de cinema, logo após a inauguração do Cine Guarany, no lugar onde fora o Teatro Carlos Gomes, nos encontramos pela primeira vez, ele, um adolescente de cabelo revolto, quase um guri apaixonado pelo Cinema.
Fomos apresentados por Walter da Silveira, que eu conhecera pela mão do poeta Sosígenes Costa. Como eu havia estudado em Ilhéus, visitava Sosígenes, em sua sala na secretaria da Associação Comercial de Ilhéus, aprendendo com ele novidades de poesia moderna que eu não conhecia. Walter da Silveira era uma espécie de guru do cinema, principal conhecedor dessa arte na Bahia. Além de Glauber, como crítico influenciou outros, que viriam depois, como Orlando Sena, Hamilton Correia, José Humberto entre outros, pouca gente, mas que surgiu por influência dele. Apresentados, daí por diante, nos encontrávamos em sessões de cinema, inclusive pré-estreias no Cine Guarani, que se tornaria hábito regular aos domingos, ou nas sessões do Clube Cinema, criado justamente por Walter da Silveira, em esporádicos lançamentos de livro, exposições de arte e eventos outros.
Integranti della G.M.
Então esse Glauber rapaz estava naquela fase de alguém em busca de crescer, de se afirmar culturalmente. Fomos ficando mais próximos, aumentando-se os contatos, até me tornar um dos espectadores dos espetáculos de poesia teatralizada, as famosas “Jogralescas”, que ele e outros da geração, ainda estudantes secundaristas, levaram no auditório do Colégio da Bahia, o depois Central. O grupo se compunha de umas 15 pessoas, a declamarem poemas de modernistas, como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, quer dizer poetas do modernismo, central, forte, que, de certa forma, na segunda metade da década de 50, eram ainda novidades na Bahia, mas com tal arrebatamento, que causaram escândalo no meio cultural e ameaças, exigindo a interferência de apaziguadores de dentro e de fora do colégio. Com Calasans Neto como cenógrafo, Glauber foi o organizador, quem escreveu o roteiro e dirigiu os três espetáculos dessa extraordinária aventura cultural.
Como eu estudava na Faculdade de Direito e ele ainda estava no final do curso de colégio, encontrávamos pouco; mas recordo o encontro que me lançaria nessa caudal de sonhos, com moldura exótica, senão cômica. Acabava eu de publicar no nº 11 da revista
Ângulos o poema intitulado “Composição de ferrovia”, quase um hino telúrico à State of Bahia South Western Railway Company, antigo nome da depois mítica E. F. I. C. (Estrada de Ferro de Ilhéus a Conquista), que civilizou e desenvolveu a Região do Cacau, permitindo o surgimento de vilas, que logo seriam cidades e municípios. Foi quando, certa manhã, creio que de março de 1957, eu, sentado num dos bancos do
hall do edifício, veio um porteiro me avisar que um grupo de jovens estava na porta e queria comigo vêm me avisar que procuravam por mim na portaria.
Saio para o umbral e me deparo com cinco rostos quase imberbes. Logo, um deles me saúda e, dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático: “Viemos aqui para conhecer o autor do poema “Composição de ferrovia”, para nós o melhor poeta modernista da Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e incrédulo, agradeci o hilariante gesto. Nome do excêntrico porta-voz: Glauber Rocha, que, em seguida, me convida a ir à sua casa, na Rua General Labatut, 13, 1º andar, onde costumava reunir-se com os companheiros, para discutir uma quase infinita pauta de inquietações e aspirações modernistas.
E como se daria este convívio? Dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber, possuía uma pensão nos Barris, à mesma rua, nº 14. Todos vivíamos então em permanente escassez financeira; sempre que convidados por Glauber, íamos em grupo almoçar na pensão de sua amada genitora. À noite, íamos para a casa dela. Lá, no quarto de Glauber, onde havia duas camas de solteiro, ficávamos uns oito a dez rapazes sentados, a discutir literatura, artes plásticas, teatro e cinema, ele a ler trechos de livros de consagrados autores e diretores de cinema, tais como o russo Eisenstein, o francês André Bazin, os criadores do neo-realismo italiano, como Fellini, Visconti, Rosselini, os grandes da França, René Clair, Jean Renoir, Jean Cocteau e outros, e os americanos que ele adorava - Orson Wells, John Ford, Hitchcock, Bill Wilder e tantos mais.
Naquele quarto, como prova de atualidade cultural, cada um dissertava sobre um livro, de prosa ou poesia, que lera, de um filme a que assistira, de uma exposição de artes plásticas, cada um a expor impressões sobre forma e conteúdo em obras de arte e literatura. Funcionava como uma espécie de cooperativa juvenil do pensamento, com duas camas de testemunha. Mal chegado aos dezenove anos, o futuro cineasta semelhava um criador visual de nascença. Via cena de cinema em tudo; descrevia a forma como aquela cena poderia ser vista, construída, fotografada, filmada; tudo para ele devia possui um enquadramento. Estando uma pessoa sentada numa cadeira, a conversar com outra, ele se postava diante, como se estivesse com a câmera na mão, a indicar como seria construída a imagem.
Há outra faceta de minha convivência com Glauber Rocha. Nesta época, as reformas na Universidade da Bahia, permitiam que a pioneira de Teatro, situada no bairro do Canela, apresentasse novidades para todo mundo, levando peças do quilate de
Hamlet, de Shakespeare,
Mãe Coragem e
Ópera dos Três Tostões, de Bertholt Brecht,
Calígula, de Albert Camus, entre outras de magna importância.
Na ocasião, fundava-se também um novo jornal na Bahia, que chegava com a pretensão de concorrer com o então inquebrantável prestígio de “A Tarde”, o que realmente iria acontecer. O “Jornal da Bahia” chegava para ser considerado o novo jornalismo. Para tanto, constituiu uma redação, que funcionasse de forma diversa e superior à dos concorrentes, desde que parte de seus componentes era arregimentada nas faculdades. Interessante é que quem mais forneceu componentes para esse grupo foi a Faculdade de Direito, vindo a seguir a de Medicina e de Filosofia e Ciências Humanas.
Para fazer com que essa redação funcionasse o jornal necessitava que sua composição se distanciasse do espírito academicista, passadista, que ainda predominava nas dos concorrentes, vistas como resistente a muralha de conservadorismo, em estilo e desempenho. Na ocasião, já cursando a Faculdade de Direito (abandonou-a no primeiro), Glauber Rocha, foi convidado para compor a equipe de reportagem do novo jornal e, parecendo proposital, logo tratou de procurar jovens que conviviam com ele, indicando-os à direção do “Jornal da Bahia”. Fui um deles. Interessante aí é que, como futuro cineasta Glauber era, para mim, no íntimo um jornalista. Tanto assim que, para formar a base de conteúdo dos seus futuros filmes, como “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Dragão da Maldade” e “Terra em Transe”, logo depois fez uma viagem ao Nordeste. Essa experiência foi narrada por João Carlos Teixeira Gomes, seu companheiro de viagem, no semanal Caderno Cultural, de “A Tarde”. Nela, a intenção era colher subsídios essenciais para montar os roteiros de seus filmes, o que em muito iria impulsionar a sua arte cinematográfica.
E nós fomos, os quatro, para o “Jornal da Bahia”, eu, João Carlos Teixeira Gomes e Paulo Gil Soares, para a reportagem-geral, e Calazans Neto, para a diagramação, enquanto Glauber foi nomeado editor de polícia. E aí reside uma das histórias dele que ninguém conta. Editor de polícia, me lembro como era o Glauber jornalista: no fundo, jornalista cineasta e cineasta jornalista, posto que assumiu a função com o pensamento de mudar a forma como eram em geral encarados os assuntos na área policial, os crimes e as ações de violação da ordem social, mas para o que vinha com ideias.
Como a reportagem policial nessa época, em Salvador, ainda exibia traços de narrativa viciada, sobrecarregada de cacoetes, Glauber dizia querer algo diferente. Há exemplos. Recordo-me de um deles, o de um dia em que um rapaz se suicidara na Cidade Baixa e era simples empregado de uma lanchonete situada na entrada do Elevador Lacerda. Matara-se um jovem. Então Glauber diz: “Vamos fazer a reportagem, contando a história desse rapaz”, dispersando a impressão de que o caso seria tratado dentro no estilo da narrativa policial vigente. Então, pede ao chefe de reportagem geral que designasse um de seus comandados. Fui o escolhido por ele mesmo: “Olhe eu quero que Florisvaldo vá fazer esse trabalho”.
Então, depois de ouvir as suas orientações, saí da redação, na típica peregrinação de quem vai contar uma história, em que o ponto central era um personagem praticamente sem história nenhuma. Em lá chegando, perguntei na lanchonete sobre o que fazia o suicida. “Ele aqui lavava os pratos”. Levei um choque e, a partir daí, comecei a colher dados, seguindo os rastros. Cheguei ao prédio onde ele se matara (junto da Igreja da Conceição da Praia), num quarto do terceiro andar. Lá anotei tudo o que servisse ao conteúdo da narrativa, entrevistei pessoas, que o conheciam e depois, num lance de sorte, fui informado de que ele tinha uma namorada que era caixa de uma farmácia. Como haviam poucas farmácias ficou fácil, pois encontrei a moça.
Ela morava lá na Ribeira e eu aí fui com ela de ônibus até a sua casa, sentado a seu lado, a entrevistá-la. Contou-me sua história e a do namoro. Descobri que ela tinha mandado um bilhete para ele desfazendo o namoro e foi a razão do desencanto, que levaria o pobre coitado a pôr fim à vida. Estava receosa de ter seu nome divulgado publicamente, estampada como notícia policial.
Saíra do jornal a uma hora da tarde; após todo esse périplo, quando retornei era sete da noite. Sentei em frente à máquina Remington, escrevi a reportagem. Na edição do dia seguinte, a matéria com a história do jovem suicida ocupava quase página inteira da seção de polícia, com a reprodução do bilhete da namorada. Estava ali demostrado quem era o verdadeiro Glauber, no exercício do cargo de editor de polícia; na verdade, agia como um autêntico cineasta, atuando na editoria de polícia como que pensando no roteiro para um filme, os fatos deveriam ser narrados como a compor um roteiro cinematográfico. Por essas e outras, foi uma figura extraordinária de jornalista.
Em outra fase, pouco depois, convivi com o Glauber no jornal “Diário de Notícias”, durante uns três anos, até ele se mudar para o Rio de Janeiro, em 1962. Lá o acontecimento mais importante traduziu-se na criação do seu suplemento dominical, que ficou famoso pela a sigla SDN, em letras garrafais na capa. Nós, ele, Paulo Gil e eu, na verdade, com a supervisão do jornalista Inácio de Alencar, então editor-chefe do jornal, instalamos praticamente a “Geração Mapa” neste suplemento, o que passou a ser, até hoje, uma referência da história da cultural da Bahia, na segunda metade do século XX, objeto de pesquisas na área de pós-graduação universitária, como também de outros interessados. No “Diário de Notícias” formalmente desempenhou a função de copidesque para as matérias dignas de chamadas na primeira página das edições, mas foi também o criador da coluna social, intitulada “Krista”, comandada por Helena Ignez, já atriz de teatro, de cinema, e sua mulher.
Como disse, a convivência com Glauber Rocha, o cineasta, o jornalista, o entusiasta da cultura e o amigo sincero e solidário, era praticamente cotidiana, até sua mudança para o Rio, onde seu nome, sua obra cinematográfica e múltiplas ações culturais se firmaram e ganharam o mundo, tornando-o talvez mais cintilante astro na constelação do cinema no Brasil. Mesmo quando fixou residência no exterior, de onde me enviava cartas, era uma visita que eu contava como certa. Por isso não me canso de afirmar: fui seu admirador confesso e fomos amigos, até ele morrer, em 22 agosto 1981. Resta a saudade imensa.
Não poderia encerrar este percurso cordial quase inteiramente evocativo, sem me referir a traços de Glauber Rocha, que pareceriam contraditórios, ante a sisudez que sua personalidade deixava transparecer. Nesse aspecto, relembro episódio tão cômico quanto surrealista, protagonizado por alguns de nossa turma numa noite de boemia quase estreante. Em meados de outubro de 1958, um mês depois de fundado, o “Jornal da Bahia” fazia o primeiro pagamento dos que compunham a sua equipe de Redação, e lá fomos receber no guichê da gerência o de que achávamos merecedores. Pegamos o dinheiro curto no caixa e, à noite, com a adesão de mais alguns, alegres e felizes, marchamos todos para o Tabaris Night Club, casa noturna de música e dança, frequência de boêmios e endinheirados, que na ocasião apresentava um balé argentino, composto de belas loiras e morenas, dançando o repertório musical da moda - bolero, mambo, rumba, conga e tango, ao som de uma afinada e esperta orquestra de sopro, cordas e percussão.
Era comum nos intervalos, como parte da atração, as bailarinas virem às mesas, conversar, beber e até dançar com os clientes. Nesta para nós noite inaugural, mulheres na mesa, bebendo, saímos alguns a dançar, inclusive com as do balé. É quando, perto da meia-noite, Glauber, um protestante de devoção arredia, abstêmio total, subitamente mais inquieto que o normal, passa a censurar os protagonistas da cena e a protestar contra o que considerava excessivo. Mais que de repente, de cenho fechado, sobe na mesa e, em pé, põe-se lá de cima a bradar, possesso: “É um absurdo! Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!” E, em tom de execração bíblica, repete mais de uma vez a última frase - ”Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!”. Aturdidos, as moças e companheiros em volta rogam-lhe que tenha calma e desça. Os de outras mesas se voltam apreensivos. É quando, atendendo aos clamores, entre o sério e o bonachão, o arremedo de pastor eclesiástico desce da mesa, provocando risos mochos e até gargalhadas.
A EDIÇÃO MATUTINA
(À memória de Glauber Rocha, artista, amigo e companheiro de jornal)
Florisvaldo Mattos
Nada sei além do que me contam
os hebdomadários perseguidos
os diários desaparecidos
os livros burocraticamente censurados
os discursos jamais pronunciados
Muito
de dor enclausurada
de raiva contida
de memória desesperada
Muito
de petrificado esterco
de martírio indevassado
fel de carcomida flor
Como em toda experiência humana
Como em toda verdade proclamada
Há a marca indelével do sofrimento
nas páginas enfurecidas
Nada sei além do que me contam
relatórios
encimados por tipos de caixa negros
vomitando
pelas janelas dos escritórios
pelos pátios dos colégios
pelos verdes
gramados dos jardins municipais
pelas oficinas mecânicas
pelos bares
pelas praias e estádios superpovoados
pelos ônibus
pelos trens
pelos aviões
e navios que levam petróleo
pelo mar
por todas as estradas que começam na infância
Tudo o que o chão calou e o ar esqueceu
Tudo o que a água afogou e o fogo torrou
Tudo o que o sol escondeu e a lua gelou
Tudo o que o dia borrou e a noite ofendeu
Por esta janela escancarada diante do mar
com o horizonte lantejoulado de nuvens claras
na manhã de um dezembro moribundo
rajadas de azul me trazem a história
de tudo
estampada na páginas em fúria
onde não há nenhum signo gráfico
nenhum nome
somente linhas de sangue
vergonha e desespero
Algo lido não sei onde
mas logo esquecido
Algo escrito não sei onde
mas logo apagado
Algo de ausência denunciada
mas logo justificada
Algo de presença intolerada
mas logo consentida
Algo de dúvida arguida
mas logo desfeita
Algo que violou a alma
mas logo com rigor apurado
Algo de assombro que povoa os muros
Algo de aceso punhal que cega as mentes
Algo catastrófico no refúgio dos mitos
que nunca veio à luz nem foi explicado
Vem-me pela porta aberta desse verão doente
ecoando na varanda das páginas desertas
das edições que sangram gota a gota
nas enfermarias do acontecer
(de ontem
de hoje
de amanhã
de sempre)
e adquire uma velocidade assustadora
Porque a luz é forte e ensurdece
Porque o agitado do mar escurece
Porque chega o vento e exerce
o poder de lançar a espuma
contra as estrelas adormecidas
Porque a poeira da rua enegrece
as vestes nos varais abandonados
Porque é cedo e todos sabemos que tarda