JORGE AMADO em representação de ILHÉUS
- De história e ficção para o desenvolvimento -
Maria de Lourdes Netto Simões[1]
Introdução
Cem anos não são cem dias!... Essa é uma forma de falar do povo brasileiro quando, tomando o tempo como referencial, quer expressar a importância de algo ou alguém.
Neste ano em que se comemoram os 100 anos de Jorge Amado, o tempo se impõe, sim; e se amplia em significação, devido à obra desse escritor ter levado para o mundo a cultura baiana, através da sua ficção.
Nascido em Ferradas (1912), então distrito de Itabuna, Jorge Amado, no entanto, viveu a sua infância em Ilhéus (Bahia – Brasil). Cidades-coração da região Sul-baiana, Itabuna e Ilhéus irmanam-se por serem berço do seu filho mais ilustre.
De menino do cacau, filho de fazendeiros desbravadores, Jorge Amado tornou-se ícone sul-baiano (Bahia – Brasil); referência mundial da ficção brasileira. Nesse sentido, perguntas se impõem no que tange à
representação, ou seja, à mútua interferência local/autor, em via de mão dupla. De uma via, questiona-se: as terras onde o menino Jorge viveu interferiram no imaginário do escritor? a sua obra ficcional apresenta marcas dessas terras do cacau? Por outra via, também se pergunta: a obra amadiana tem influenciado no cotidiano ilheense? a obra tem impactado para o desenvolvimento local?
No âmbito da vasta obra amadiana, aqui, tento evidenciar um pouco do imaginário que conta o chão grapiúna, a Saga do Cacau, representada nos romances:
Cacau (1933),
Terras do Sem Fim (1942),
São Jorge dos Ilhéus (1944),
Gabriela Cravo e Canela (1958),
Tocaia Grande – a face obscura (1984). Para tal, recorro também às memórias do menino Jorge, em
O Menino Grapiúna (1981).
No primeiro momento, ocupo-me da construção da referida saga, em representação da história, nela buscando marcas dessas terras do cacau; no segundo, teço reflexões sobre a contribuição da ficção e do ícone Jorge Amado para a comunidade sul-baiana, mais especificamente a cidade de Ilhéus. Assim procedendo, expresso a minha compreensão do literário como influenciado e influenciador da história (SIMÕES, 2002); nesse caso específico, penso em como a região enriqueceu o imaginário amadiano e como essa obra ficcional vem contribuindo para o desenvolvimento local.
A presença de Ilhéus na ficção amadiana
É o próprio Amado quem considera as suas origens ligadas à formação da cultura sul-baiana, quando afirma em
Menino Grapiúna:
Rapazola, meu pai abandonara a cidade sergipana de Estância, civilizada e decadente, para a aventura do desbravamento do sul da Bahia, para implantar, com tantos outros participantes da saga desmedida, a civilização do cacau, forjar a nação grapiúna. (AMADO, 1981, p.11)
Situada no coração da Mata Atlântica remanescente, a chamada civilização do cacau (sul da Bahia, Brasil) faz o cenário da Saga do Cacau amadiana e é rica em paisagem, cultura e história.
Em verdade, o que chamamos de Região Cacaueira ocupa todo o sul da Bahia, espaço que abrangia as capitanias hereditárias de São Jorge dos Ilhéus e de Porto Seguro, do Brasil colonial. Aí, o cacau foi apontado desde aquele tempo, quando “Aires de Casal, em 1817, ao descrever a vila de Ilhéus ou São Jorge já registra ‘algum cacau’ ao lado do arroz e café” (Adonias Filho, 1976, p.14). A saga amadiana, no entanto, ocupa-se somente da sua micro região, das terras situadas no território da antiga capitania dos Ilhéus, onde hoje habita a denominada civilização do cacau:
"O cacau, à proporção que altera a paisagem, a empurrar e diminuir a selva, a abrir
fazendas, a estabelecer um sistema de comércio, conforma culturalmente uma região.”
(Adonias Filho)
A conquista do chão do cacau, gradativamente, foi moldando as matrizes culturais da microrregião Cacaueira; coronéis, jagunços e trabalhadores rurais desbravaram e construíram uma civilização, cujo centro gerador de toda a dinâmica sócio-cultural é o cacau, termômetro das alegrias e tristezas da sua gente. Naquele início, a lavoura dos “frutos de ouro” alcançou destaque nacional e internacional. Desde então, o cacau passou a ser o
referente do imaginário regional.
Desse contexto, a memória do menino registrou dramas vivenciados que o escritor ficcionalizou: as questões da terra, sua conquista; perfis típicos; hábitos, crenças, valores. Assim, Jorge Amado foi construindo, progressivamente, a sua saga. Nos seus primeiros livros, pela ótica do poder, conta a origem e o crescimento da civilização grapiúna, o desenvolvimento de Ilhéus, o nascimento de Tabocas, depois Itabuna.
Em
Cacau, o primeiro romance da saga, evidencia o desequilíbrio social: de um lado a opulência dos fazendeiros; de outro, a pobreza dos trabalhadores:
Como era grande a casa do coronel [...]. E olharam as suas casas, [...] casas de barro, cobertas de palha, alagadas pela chuva. (AMADO, 1933, p. 12).
A ficção refere que a ambição, simbolizada no
visgo do cacau, prende as pessoas à terra, torna-as grapiúnas. Em
Terras do Sem-Fim, Jorge Amado foca a conquista feudal para, a seguir, ocupar-se da conquista imperialista dos exportadores, em
São Jorge dos Ilhéus. E é o próprio Amado quem declara a forma como o vivenciado foi ficcionalizado:
Nesses dois livros tentei fixar, com imparcialidade e paixão, o drama da economia cacaueira, a conquista da terra pelos coronéis feudais no princípio do século, a passagem das terras para as mãos ávidas dos exportadores nos dias de ontem. E se o drama da conquista feudal é épico e o da conquista imperialista é apenas mesquinho, não cabe a culpa ao romancista. (AMADO, 1992).
Assim, passo a passo, vai re-apresentando a história da terra em que viveu a sua infância.
A demonstração da força política, do progresso local são, depois, tratados em
Grabiela, Cravo e Canela:
Progresso era a palavra que mais se ouvia em Ilhéus e Itabuna. (AMADO, 1958, p.69)
Esse tempo foi intervalado entre os anos 30 e 80, período áureo para a região. Na ambiência local, foi o tempo de riqueza social, quando a comercialização e a exportação do cacau provocaram a febre da riqueza e de valores centrados no ter. Essa cultura forjou comportamentos, valores invertidos; cobiça, desmandos, elementos caracterizadores dos comportamentos de uma época, que foram ficcionalizados: a história dos coronéis era o foco de interesse das narrativas.
A seguir, o imaginário amadiano se amplia e se redimensiona. A visão focada na cultura coronelista ganha novo olhar. Mais de vinte anos depois, em
Tocaia Grande, Jorge Amado relê a saga do cacau voltando o foco para o trabalhador rural, a prostituta, o negro, o árabe (sírio e libanês) comerciante – os menos favorecidos. E Amado afirma a sua intenção autoral:
Quero descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida dos compêndios da História por infame e degradante. (J. A,1984, p.15).
Com contornos épicos e da perspectiva dos vencidos, o escritor realiza a mitificação literário-ideológica do popular, quando ficcionaliza a história pela ótica dos excluídos, buscando recolocar a nação grapiúna e discutir a sua identidade.
A perspectiva, então, é diferente: é a do resgate dos verdadeiros heróis, através da evolução sócio-cultural de uma comunidade e da demonstração de valores étnicos e culturais esmagados pela violência da conquista do cacau. A temática, no entanto, é a mesma: a da saga do cacau; o chão é o mesmo: o do sul da Bahia.
Aspectos da nação grapiúna (do seu povo, da sua cultura, das suas origens), pela oportunidade da mudança de perspectiva, são acrescentados ao resgate cultural, realizado nas obras anteriores. A ambiência do coronel, do trabalhador rural é acrescentada pela presença de árabes (sírio-libanês), negros, sertanejos sergipanos, esses três elementos, que enriquecem, com a sua cultura, o perfil regional.
Assim, cruzam-se hábitos, maneiras de festejar e chorar. Misturam-se sergipanos, sertanejos, levantinos, línguas e acentos, odores e temperos, orações, pragas, melodias. [...] Por isso se dizia grapiúna para designar o novo país e o povo que o habitava e construía. (AMADO. 1984, 191).
Em hibridação (CANCLINI, 2003), vão sendo assimilados hábitos e costumes; alimentação, religião, posturas éticas, valores... Progressivamente, à chamada civilização do cacau, incorporam-se os comportamentos dos chegantes; e vai-se enriquecendo a nação grapiúna.
A obra de Jorge Amado em representação dessa nação grapiúna, chega aos quatro cantos do mundo. É traduzida em vários idiomas de distintos países; e é relida em várias linguagens: teatro, novela, cinema, fotografia.
A ficção amadiana e o desenvolvimento local
Como refere a ficção, no processo da saga, Ilhéus e a região sofrem com os desmandos dos homens e as circunstâncias de uma opção agricola monocultora. O dito popular tornou-se realidade:
Avô rico, pai nobre, filho pobre.
As pragas da podridão parda e, depois, da vassoura-de-bruxa assolam a lavoura. Empobrecida, já nos anos 90, a região procura formas de sobreviver. Busca respostas próprias da sua situação histórica e geográfica privilegiada no mapa do país. Passa a valorizar a sua singularidade: estar situada na Mata Atlântica remanescente, possuir uma das maiores biodiversidades do planeta e um dos litorais mais belos do Brasil. Culturalmente, assume a singularidade da sua cultura, inclusive o fato de ser o berço de um dos maiores expoentes da literatura nacional: Jorge Amado.
Nessa nova realidade, o turismo se impõe como uma das alternativas mais promissoras para o desenvolvimento de Ilhéus e da região. Assim é que a figura do seu escritor maior passa a ser o motor desse turismo local. Os ilheenses recorrem ao fato de que a literatura amadiana, lida nos quatro cantos do mundo, faz leitores tornarem-se turistas a procura de re-conhecer o local imaginado.
Tomado como
marketing em apelos turísticos, hoje, o ícone Jorge Amado é potencializado pela comunidade como atração para a região. A ficção amadiana funciona, então, como agenciadora do trânsito (SIMÕES, 2002). As fronteiras redesenhadas pelo imaginário fazem o espaço/tempo ficcional projetar o espaço/ tempo real, no leitor (turista da cidade imaginada), instigando-o ao trânsito que o torna turista (leitor da cidade real). O princípio é de que o leitor amadiano resolve um dia visitar as terras ficcionalizadas e, assim, torna-se turista nas Terras do Cacau.
Por sua vez, a comunidade grapiúna - e particularmente a ilheense - opera o imaginário amadiano em via inversa, agora lendo a cidade através da obra. Assim é que oferece o bolinho da Gabriela ao turista, que se senta no restaurante Vesúvio; prepara a Rua Jorge Amado, onde morou o escritor, em convite aos visitantes, incentivando-os ao passeio à praça da catedral, ou às ruas estreitas da cidade por onde passavam as personagens Malvina e Gerusa.... Restaura o Bataclan, agora reconfigurado em casa de atividades culturais; oferece um centro de artesanato, onde podem ser encontradas
souvenirs que remetem aos romances da saga.
Enquanto o turista busca o reconhecimento da ficção, a presença do imaginário do cacau se faz, para o local, reconfigurada em exploração turística. O signo Jorge Amado está por toda a parte. Por vezes, sentindo-se um tanto dono da "marca", o local, em exploração banalizadora, expõe a imagem de uma Gabriela em ônibus urbanos, lanchonetes, pousadas... Coloca o nome em tipos de sanduíche, sorvetes, chocolates; busca, dessa forma, atrair pela beleza, sensualidade, cheiro (de cravo e canela), instituindo o "tipo" Gabriela, vinculada ao tempo áureo do cacau. Mas há o habitante que busca explorar o imaginário em valorização da obra amadiana. Faz a sua cidade re-ler a literatura através de apelos semióticos.
Estabelece "pontes" entre o imaginado e o real. Através de várias linguagens, a literatura interfere no desenvolvimento regional. É re-lida através do teatro, da dança, da música, da telenovela, do cinema, da fotografia, da escultura, da pintura, de vídeos-documentários. Além disso, os grapiúnas procuram absorver, também das páginas amadianas, a maneira de receber, de comer, de viver; e a cidade se faz texto.
Naturalmente, operar o turismo através da literatura implica uma compreensão do funcionamento do mercado cultural no contexto globalizado, e o habitante local sabe disso. Procura fazer com que a cultura dê o “tom” da relação entre local e global, entre cultura e turismo. Nesse entendimento, a obra amadina é alavancadora do desenvolvimento local.
Devido a esses vários apelos, o interesse por Ilhéus toma novas cores. A comunidade explora a curiosidade do turista em conhecer a cidade palco de tantos interesses, de tantas lutas, tanta vida, tanta mistura cultural. E Ilhéus segue caminhos amadianos, de história a ficção, para o desenvolvimento.
Referências
ADONIAS FILHO.
Sul da Bahia: Chão de Cacau. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976.
AMADO, Jorge.
Cacau. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1933.
AMADO, Jorge.
Terras do Sem Fim. 64 ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
AMADO, Jorge.
São Jorge dos Ilhéus. 13 ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.
AMADO, Jorge.
Gabriela , Cravo e Canela. 51ed. Rio de Janeiro: Record, 1975.
AMADO, Jorge.
Tocaia Grande: a face obscura. 12 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
AMADO, Jorge.
O Menino Grapiúna. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1981
CANCLINI, N. G.
Culturas Híbridas. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa.
3 ed. São Paulo: EDUSP, 2003.
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. De leitor a turista na Ilhéus de Jorge Amado.
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.6. Belo Horizonte: Abralic,
2002. p. 177 – 184.
[1] Pesquisadora na Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus – Bahia – Brasil). Ensaísta. Doutora em Estudos Portugueses e pós-doutora em Literatura Comparada e Turismo Cultural, pela Universidade Nova de Lisboa. Comendadora da Ordem do Ensino Público, através de comenda outorgada pela Presidência do Governo Português. Integrante do Conselho Estadual de Cultura da Bahia - Brasil. Consultora para assuntos literários e culturais.